- Então, não vais falar?
- Não.
- Nem sequer um bocadinho?
- Deixa-me em paz.
O silêncio do palhaço de ferrugem mantinha-se quase ininterruptamente desde que entraram no túnel de cor ocre e perderam de vista a gruta, o conselho das esfinges e a companhia de circo, e permanecera até então, ameaçando contaminar o humor dos outros. O mágico e o director destituído das suas funções – os dois homens mais velhos e de idades mais aproximadas do grupo – tinham parado de conversar, entre encontros e ventos das mais variadas espécies. O mágico tinha até parado de fazer magias com as mãos e com as cartas. O cão, pouco falara, ou no entender de Miguelti, nada falara de seu interesse – parecia de certa maneira que mais preocupado estava em fazer-lhe parecer que estava demasiado entediado com toda a tacanhez e estupidez à sua volta e que era mais esperto do que o que parecia do que fazê-lo acreditar que não era um cão que falava. O extintor transmutador seguia nas mãos do director – pronto para salvá-los, concluiu Miguelti, de alguma situação bicuda. Quase que não foi necessário usá-lo quando enfrentaram um Sol quadriculado, que, peripateticamente tresloucado, no topo de uma gruta e no cimo de um abismo num corte que dividia o chão em dois - tantas estalactites, espalhando-se verticalmente pelo chão de pedra - ameaçava insuflar-se, dizia gritando, e, como um sino a badalar - também suas palavras - destruir tudo o que existisse rearranjando, na verdade bastante descontroladamente, as quadrículas que compunham a sua face instável e amarela, com laivos de vermelho que por vezes assomavam como passageiras manchas de sangue. Miguelti lançou para tentar acertar na boca que se mexia, sem parar num discurso apopléctico e baboso, um desumidificador portátil que trazia na sacola (um preparado de ervas feito pelo professor Strutermutter que cada um dos rapazes trazia nas suas sacolas de aventureiros), mas não foi na verdade preciso porque a superfície do Sol absorveu imediatamente o objecto, e enquanto que o Sol momento antes de se desintegrar, em princípio, como lhes dizia entre todos os gritos possessos, com o calor, o cão correu para o abismo distraindo-o ainda mais, e finalmente o director destituído das suas funções apontou a boca do extintor transmutador ao centro do Sol quadriculado que, com o jacto de espuma em que foi consumido, desapareceu na nuvem branca que depois, por força da gravidade, caiu no abismo, não deixando um único vestígio do Sol que antes ameaçara tornar-se - em princípio - numa Nova.
Após terem saído da gruta os problemas começaram imediatamente a surgir. "Quem é que trouxe as sandes?" perguntou o palhaço de ferrugem, olhando em fúria progressiva para cada membro do grupo, estando todos de cabeça baixa, ou fingindo não ser nada com eles. "Ninguém trouxe as sandes?, ninguém trouxe a merda das sandes! As sandes que estavam de propósito em cima da banca da cozinha!" "Ninguém viu sandes nenhumas", respondeu o director, dizendo com o seu bigode, que sim tinham visto as sandes, ou talvez fosse da tensão do estreito penhasco para o abismo sem fundo visível que estavam a atravessar. "Eu disse-te que estavam lá as sandes para as trazermos connosco no caso de isto acontecer - outra vez! E agora, comemos o quê?", Eu tenho umas bolachas desidratadas especiais... Começou Miguelti a dizer, mas foi logo cortado pelo palhaço de ferrugem e o mágico a falarem por cima um do outro - "Cogumelos, pá, Cogumelos? É isso que eu vou comer para enganar a fome, um fungo a saber a humidade produzido no chão de uma mina que tem esfinges sentadas em bancadas a falar contigo?" "Eu não me lembro..." começou a contrapor o mágico, iniciando uma discussão que deixou os dois mais o director, árbitro por necessidade própria de todos os conflitos da trupe que o destituíra, para trás.
Miguelti e o cão distanciaram-se da confusão seguindo um pouco mais à frente, com o cão a farejar de vez em quando o caminho, e começaram por trocar umas ideias entre si.
- Então, de onde é que és? - perguntou o cão.
- Eu - Ha? Olha que bem - endireitando-se - Isso pergunto eu. De ti? - Eu vim de lá de fora, há quanto tempo atrás? Já nem sei bem. Há uma noite só, se calhar.
- Haha, uma noite só se calhar. Boa. Tenta ham, mais uns ANOS? É a confusão temporal e a falta da luz solar. De certeza.
- Anos...? - Mas de onde é que tu és, ias dizer -
- Sim, que eu também vim lá de fora. Com a companhia.
- Há quanto tempo?
- É isso que te estou a dizer - disse, subindo a perna por uns momentos para deixar cair umas gotas de urina numa parede, continuando - ,estamos aqui há anos. E tu também, de certeza. Positivo, é da desorientação temporal que a própria Mina provoca, o truque é, mal encontres uns sítios estáveis sem um fluxo muito grande de ordinarice, ficas aí e não sais. Depois...
- Ham, mortes e tal. Estou a ver. Se saírem?
- Arriscam-se a isso. - concordou o cão - Um dos rapazes voadores da companhia foi devorado por uma tartaruga num quarto cheio de nenúfares de ferro ou lá o que foi, aquele ali - fez um gesto com o focinho que Miguelti calculou só poder ser para o palhaço de ferrugem que continuava a discutir com os outros dois companheiros "lambo com a linguinha a humidade das paredes porcas, queres ver agora" - ia indo pelo mesmo caminho, pelo que explicou - é claro que ninguém percebeu absolutamente tudo, não é, quando voltou.
- Uma tartaruga? - espantou-se Miguelti - Uma tartaruga - só podia ser gigante, para comer alguém?
- Assim mesmo - o cão fez um gesto com o focinho - e carnívora, ou, eu nem sei, azul também, de carapaça azul pelo que ele disse. - Havias de o ver antes. Um tipo super educado, calmo e tudo o mais.
- Consideras? - respondeu Miguelti educadamente. Depois riu-se um pouco - Azul. Se calhar ainda são aparentados, a tartaruga e o Tigre. Pode ser que se a encontremos nos possa dizer alguma coisa. Uma tartaruga falante... - e bocejou.
- O problema é que o gajo tem uns traumas em cima - disse o cão a Miguelti, momentos antes de um falso céu tremeluzir num dos muitos tectos da Mina, apagar-se, voltar numa névoa, como a luz numa lâmpada irregular, e desaparecer de novo, iluminando o corredor certo por onde deviam seguir com um brilho tentador.
- Hã?
- Uns traumas.
- O que é que eu tenho a ver com isso? - Miguelti espalhou o braço com a tocha pelas imediações de uma ponte de pedra estreita e perigosa - só me quero ir embora. Quero lá saber do palhaço de ferrugem. A saída está por aqui como as esfinges me disseram. vou poder encontrar o Vivelti e o Professor. Para uns meses ou anos, como estás a dizer, não é? Pelo menos por mim mantenho-me igual.
- E passar por incontáveis perigos, e cenas - o cão afastou-se carrancudo, olhando ainda para cima para o céu falso que não aparecera mais - vais ver, tipo, eu avisei-te.
O Mágico aproximara-se de Miguelti - Viste? Um céu apareceu naquele tecto por onde passámos!
- Grande coisa, a outra expedição que fizemos da outra vez, em que tu não estavas, teve coisas muito mais incríveis - Disse o director, vindo de trás.
-Já nos contaste as histórias todas de tudo o que te aconteceu antes - respondeu o mágico, em tom cortês.
- Quando é que vocês fizeram a vossa última expedição? - Perguntou Miguelti, trepando uma saliência no caminho, dando a mão ao mágico que lha pedia com o braço estendido.
- Foi... - os dois homens olharam um para o outro num alerta, que Miguelti identificou imediatamente - há uns anos atrás.
- Sim há uns anitos - respondeu o mágico - foi naquela altura em que
-Que é que vocês estão a dizer? - O palhaço de ferrugem trazia o cão debaixo de um braço que ia falando sozinho - Porque eu ao fim e ao cabo sou uma minoria étnica, e devia ser reconhecido mas não tratado como tal, porque isso acaba por ser insultuoso...
- Da vossa anterior expedição - respondeu Miguelti, pondo-se entre o palhaço e o mágico e o director - estavam a começar a contar-me como tinha sido.
Seguido de um esperado olhar furioso por cima do ombro do Miguelti por parte do palhaço aos outros dois membros da trupe, olhando um para o outro - Há sim, da expedição? O que é que estavas a contar?
Continuando o grupo a andar, contornaram uma saliência na rocha sem se aperceberem no que poderia aí vir, demasiado distraídos com a conversa e eis que, primeiro que tudo o que os assola é uma onda de cheiros quentes que incluíam carnes requentadas, perfumes exóticos, água de banho deixada a estagnar, pós coloridos e decorativos, o cheiro a fezes escondidas debaixo de almofadas berrantes e frescas num pastelar contínuo de semanas mascarado pelos outros cheiros, vapor de cozedura, e o odor intenso de animais sem banho.
- Ggh - tremeu o mágico, levando a mão à boca. O grupo todo parou atrás de Miguelti. o Cão que ia na frente, abriu a boca e deitou a língua de fora, parando.
Num novo salão se encontravam, com as rasteiras que a Mina proporcionava já com alguma naturalidade para Miguelti, amplo, quando ainda há pouco caminhavam por corredores sinuosos e claustrofóbicos, pontes de pedra em risco de ruir, locais inóspitos, em suma; "Convidados, amigos venham, convidados venham, venham" e berrando "Temos convidados", num hahaha gorgolejante o homem de cabelo bem arranjado loiro para trás, com uma barriga gorda e os olhos muito abertos, com um casaco aberto rosa berrante com penas de pavão na gola, e o pénis a pender, abanando para a esquerda e para a direita irrequieto enquanto se aproximava deles de braços abertos, deixando atrás de si um trono feito de carne e um espectáculo orgástico de homens e mulheres embrulhados e cores nas suas próprias carnes nuas, máscaras e almofadas e tapetes, elefantes e músicos na sombra de instrumentos escondidos atrás dos braços e junto às bocas. "Estão no meio de uma orgia" ouviu o director dizer, sem poder ver qual o efeito dessa afirmação no seu bigode; entretanto os outros começavam a chegar-se para trás com a visão de um homem gordo nu com um sobretudo cor-de-rosa de penas de pavão a chegar-se a eles.
- Mas que - ?
- Bem-vindos! - o homem loiro falava. e não disse mais nada antes de dar um gesto com a mão em arco para lhes proporcionar tudo o que estava por detrás, em cores saturadas, de cortinas esfarrapadas presas a varões dourados no tecto da Mina, mas enquanto todos se começavam a inquietar, principalmente o palhaço de ferrugem, retomou a palavra - Há, quem és tu?, perguntou Miguelti, um pouco antes olhando para todos os lados tentando assimilar, mais uma vez, tudo o que de vivo se estava a passar à sua volta, Tu
- Liberace - respondeu o palhaço de ferrugem com um ar sombrio, ante a impossibilidade de dizer mais alguma coisa, terminando o seu discurso quando Liberace o interrompeu no "A última vez que o vi travestiu uma espécie de circo do rocambolesco como que imitar o nosso para depois" seguido do mágico a dizer Este é que é o Liberace e o Director da trupe de circo destituído das suas funções O Liberace?! Não era ele que
- Sim, sou eu!, disse Liberace olhando para todos, cada um com um ar de algum horror na face enquanto todo o ambiente (orgástico, como já se disse) se desenrolava e permanecia entre eles - Liberace, Entrem, entrem na minha festa - para o seu séquito descontrolado de ratas e pilas e orelhas de gato e caudas postas e fezes atiradas ás paredes com terrinas de prata derramadas no chão cheias de fruta , tudo com a espessura de quase ar sólido, propriamente para ninguém em particular, teria logo percebido Miguelti se não estivesse tão já enredado na teia de acontecimentos da Mina - Temos mais para a festa! - dando piruetas, cabeça para trás, rodopiando os braços,
O palhaço de ferrugem aproximou-se por trás do Director destituído das suas funções e agarrou-lhe no braço dizendo-lhe ao ouvido: "Temos que meter este gajo na ordem já e sair daqui, ele é extremamente perigoso", com o Director destituído das suas funções a anuir com a cabeça com um ar preocupado, olhando ainda assim com um brilho nos olhos o desfile de mamas que se passeava à sua frente, mamas essas que, ás vezes, enquanto não estavam a ser agarradas por homens e mulheres parecia que, oleados?, ou atrás de almofadas ou outros corpos apareciam, desprevenidas, com os seus mamilos de vários feitios que o distraíam um pouco do que os seus companheiros diziam "Estou-ta dizer, temos que sair daqui temos que meter este gajo na ordem!"
(Tarde demais), pensara o Mágico, enquanto agarrava no cão e o punha à altura do peito, para o proteger de qualquer coisa, enquanto notava o olhar de Liberace (e o seu pénis) a fixar-se em Miguelti e a tornar-se, imediatamente, bastante interessado, aproximando-se dele e procurando uma forma de meter conversa E tu meu rapaz quem és, foi fácil
- Eu? - respirou fundo - Chamo-me Miguelti.
- Miguelti.! - com um brilho nos olhos e a estranha orgia e algo mais a correr atrás de Liberace com a mesma indiferença perante os que chegaram.
- Estou comum mau pressentimento - disse o cão, nos braços do mágico.
- Sim - O seu ar preocupado denotava-o e conferia-lhe alguma personalidade que lhe parecia ter faltado desde que o rapaz de fora da Mina aparecera - Também eu.
- Que nome invulgar. - sorriu muito - E o que um rapaz como tu está a fazer neste lugar tão - inconsequente?
- Eu -
- Viemos a mando das esfinges, meu paneleiro pedante - disse o palhaço, olhando Liberace nos olhos - vamos escoltar o puto até ao fim da Mina por causa do Tigre Azul. - os seus olhos estavam cheios de raiva - mas esta uma raiva que não era inofensiva.
Teria Liberace considerado a mensagem do Palhaço de Ferrugem como uma ameaça, ou o conteúdo dela? ou tudo estaria pré-estabelecido para, mais cedo ou mais tarde, se suceder, de sua parte, uma reacção assim?, não seria nunca claro mas Liberace tomou nota - no topo de torres cilíndricas ante um céu contrastado a negro e branco, e por baixo, um abismo sem fundo.
Eram vários os pilares e as suas alturas variavam. E entre o céu a negro com farrapos de estrelas brancas estavam também eles, monocromáticos, entre a luz e as trevas. E Miguelti percebeu que ou era preto, ou branco, mas que Liberace poderia ter expulsado as cores e as sombras.; O som, tornara-se suspenso.
Os leques abriram-se devagar ante os seus olhos. Todos salvem o rei! E o rei era Liberace, mas Liberace estava diferente. Era agora um homem barrigudo com mamilos grandes e pretos, barba negra e uma cara de profundo e silencioso desinteresse por tudo o que acontecia à sua volta. As mulheres vestiam-se em cabedal e véus, e todas tinham a cabeça rapadas com cabelo desenhado em curvas elegantes, ou profusas cabeleiras em forma de piramide. Os homens reduziram-se a magros pós-adolescentes invejosos e sorridentes, com os troncos nús, aplaudindo Liberace, o rei, que procurava o seu trono (não sorria), entre todos os véus e cortinas brancas. Todos o aplaudiam. Miguelti virou-se, para o limite do precipício até ao fundo que desaparecia no negrume. Invisível. Os pilares eram lisos,e parecia-lhe, ao longe, ver o mágico, vestido de negro e de saia, a tocar uma harpa com um arco, com a Lua a banhá-lo de branco. As estrelas pareciam pintadas contra o preto do céu; - mas a Lua tinha olhos e lábios de mulher, que piscavam de vez em quando observando os pilares e os homens e mulheres neles, com a mesma expressão. Miguelti perdeu-se em contemplações. O cão estava amarrado a um pilar abaixo dele. Era agora um mastim musculado e de bochechas e olhos grandes e caídos, com uma providencial coleira de ferro, presa ao centro do pilar, com uma cadeia; e também ele parecia absorto no céu pintado com estrelas irregulares e paradas.
Vamos celebrar e vamos todos subir aos céus. A festa muda continua e Liberace, afagando o seu anel com uma caveira em relevo, senta-se no seu trono no cimo de um estrado com véus a toda a volta: uma sanita resplandecentemente branca. Façamos uma passagem de - homens com coleiras passeados pelas mulheres - que, agora nas pernas; e talvez também dos corpetes; mais cada vez se parecem com as suas próprias cabeleiras - enquanto os outros homens e mulheres riem ou aplaudem com contenção, deitados em sofás ou mexendo em fruta que rebenta - frágil, em borbotões de sumo preto, quando a oferecem a Liberace para este a meter na boca, e Liberace tudo afasta porque está à procura de um verdadeiro amor que toda aquela contida decadência não lho mostra. É a Lua que está lá em cima,tantas vezes parece a Lua indiferente, ou olhando para outro lado. Liberace também não olha para o céu, finge que este não existe, ou que não se importa com ele. Miguelti procura desenhar com o olhar os limites circulares do seu pilar. Mas perde-se, e na visão de todos os véus e corpos modelados em novas e dementes formas. As pernas esticadas, os corpos apertados em corpetes, as botas com arabescos, os braços excessivamente finos e longos, as caras e cabeças pintadas - todas as velhas são carecas. Os jovens fingem beber vinho, que escorre por vezes, contra o chão branco, quando deixam cair as garrafas pelas quais o bebem directamente, uma vez que os cálices são desprezados, e, ritualmente, se encontram horizontais no chão, ou noutras bandejas, esquecidos com a fruta e a comida. Só lhe resta olhar para longe de novo. Como estaria.? Olhou para a sua roupa. Estava de saia, numa só peça de roupa negra. Algo acontecera ao que dantes julgava lembrar-se como mundo; e pressentia que o silêncio não poderia durar. Não poderia ser o silêncio também, do facto de o mágico estar demasiado longe para Miguelti o poder ouvir. Ele ouvia-o, mas o mágico tocava com o arco a sua harpa para nada, portanto nada o ouvia. - Era a Lua. A mulher da Lua tinha de descer da Lua e obrigar Liberace a decretar o fim. Miguelti podia ascender aos céus negros com nuvens brancas desenhadas. Mas ao virar-se viu que Liberace, encostado a um pequeno pilar grego que delimitava o seu domínio, preso por véus e com almofadas aos pés, o olhava com os seus olhos negros e a sua cara grave e muda, tendo-lhe adivinhado os pensamentos. As mulheres velhas de cabeça pintadas e as mulheres jovens que se movimentavam como figuras de um teatro de sombras pegaram nele e levaram-no para o meio do domínio de Liberace, afastando-o do fim do precipício onde se encontrava. Passou pelo director que já não era o director, mas um homem jovem, cheio de cabelo encaracolado e inveja, com pêlos no peito e calças negras largas caindo na sua amargura carnal com todas as mulheres diferentes que podia. Mas estas apenas consumavam, nele, uma observação. Passeavam-se elegantemente e passear-se e existirem dessa forma pareciam ser os seus propósitos. Nos seus lábios pintavam outros lábios diferentes dos seus lábios, como se cada face tivesse duas formas de expressar o seu silêncio. Miguelti perdeu rapidamente a noção de onde estava, ou como poderia contrariar o Rei, que se sentara de novo no seu trono, mas a mulher presa na Lua,que fora a Lua anteriormente tinha de descer, de olhos grandes, de beleza ainda pouco compreensível para Miguelti, mas sentida.
Liberace dera a ordem para um desfile. Movimentando os braços em gestos lentos e precisos, com a sua barriga peluda e o seu grande umbigo a gingarem, sentado no trono. Imediatamente mais mulheres de faces alongadas, pele alva e vestidos pretos de penas, cabedal - fitas arqueadas presas aos fatos e às fantasias, cabeleiras postiças ignorando as diferentres gravidades . Todos aplaudiam a cada mulher que passava, os lábios arrepanhados num beicinho constante, os jovens todos belos e de cabelos encaracolados, e, talvez, demasiado magros. Liberace gostava do que via e mandou servirem-lhe vinho, de um jarro de prata - que no contraste de apenas as duas cores, preto e branco desde que o reflexo do _______ mudara, criava um efeito interessante na superfície da prata, branca mas a reflectir o negro, e o vinho caia, tinto e transparente no copo de Liberace, o grande Rei de barba preta rala com colares ao pescoço e o anel de uma caveira no dedo, sentado numa sanita, em cima de um palanque, imponente e silencioso, e as mulheres continuavam a desfilar, a Lua escondera-se já atrás das nuvens - Miguelti procurava vê-la olhando por entre os pilares jónicos, e as cortinas e os véus de tecido branco esvoaçantes, presos em arco como tendas - e Liberace gostava do que via enquanto bebia e observava. Levou três dedos à boca que molhou com a língua, deixando um fio de saliva correr para o peito, e afagou com as suas pontas, em movimentos circulares, um dos seus mamilos, redondos e grandes e pretos. As velhas de cabelos pintados nas cabeças carecas olhavam para ele e falavam, gesticulavam, mas claro que não se ouvia nenhum som a não ser o do vento a soprar entre os pilares erectos no abismo. Miguelti decidiu perder-se nesse labirinto de véus e pilares, almofadas e sofás e corpos no chão, ou a conversarem sobre inutilidades esotéricas mudas. O grande pilar onde estavam era finito. Não se podia perder tanto assim a não ser nos caminhos que se formavam e despareciam enquanto os corpos se deslocavam. Rolavam devagar, pelo chão, abrindo ou fechando novas passagens. Encontrou o Mastim, olhando-o com os seus olhos fundos. Malhado e grave, em borrões pretos pelo corpo de pêlo branco, com uma enorme trela estilizada com picos, de estrangulamento. Pediu-lhe para o seguir, virando-lhe o dorso. Algumas mulheres observavam, também, Miguelti pelo canto do olho. E, na verdade, ninguém conseguia fugir a Liberace. Este comandava a festa e o desfile com gestos mudos de braços, subindo-osou descendo-os em arco. Pedindo coisas. Sendo servido. O mastim levou Miguelti até ao outro lado do pilar, e também ali a Lua estava visível, no topo do céu. E desse lado, outro pilar se via, mais alto, parecendo, com a noção de perspectiva, que tocava na Lua, e - um homem estava a escalar o pilar, elevando-se nos céus, para chegar ao seu topo. Miguelti viu-o, recortando-se contra as nuvens brilhantes e opacas, sem profundidade, espalmadas contra o preto e os pontos brancos de estrelas no céu. Era o palhaço de ferrugem, agora limpo e mais novo, sério como sempre - ao longe, pelo menos, parecia-lhe - E trepava pelas saliências invisíveis do pilar, até chegar à Lua; de olhos postos nele, ou na direcção, atrás de outros pilares e véus, de Liberace, a Lua observava também o seu trepar.
O palhaço de ferrugem trepou até ao fim do pilar e Miguelti e o mastim viraram-se para voltar para o centro, onde estava Liberace e a sua sala do trono, para - não perturbar o momento em que o palhaço de ferrugem chegaria finalmente à Mulher na Lua, e para verem o que aconteceria a seguir. Os véus agitaram-se e os homens jovens olharam nervosamente uns para os outros, com risos ansiosos, e as mulheres, as novas exuberantes e as velhas de olhos grandes esticaram os seus sorrisos falsos até ás orelhas. Liberace levantou-se e atirou para o chão o pequeno espelho onde estava a contemplar-se. Ao descer do palanque, passou por outro, grande, e atrás de si viu uma mulher diferente que, mas quando se virou essa mesma mulher tinha desaparecido, as orgias estilizadas e esotéricas e os desfiles e o banquete (ritualizado apenas nas peças de prata) tornar-se tão leve e sombrio como as cinzas de uma enorme indiferença perante ele; o Rei estava nos seus momentos finais. O palhaço assomou enfim por trás de um véu grave e limpo, e pôs-se frente a Liberace. A dúvida nasceu nos olhos pintados em borrões de negro naquela besta de homem silencioso e sério - não maligno, mas apenas um peão num outro desígnio que também a ele o ultrapassava - cheio de colares no pescoço. A mulher descida da Lua apareceu entre eles, também por detrás dos véus da câmara principal e todos deitados no chão e em almofadas olhavam esta mulher diferente, de feições normais e face muito branca, de cabelos encaracolados caindo-lhe pelas vestes brancas, lábios pintados de preto. Liberace nos seus olho, babando-se em desejo. Eu importo-me porque tu te importas; - nos lábios da mulher, os seus olhos. O palhaço de olhar grave e desafiador wesperou o confronto. O êxtase era agora palpável pelos homens e mulheres que os observavam e cada um deles bebia o último gole de vinho antes do momento em que Liberace tomaria a sua decisão, cada mulher puxava os seus sorrisos até ás orelhas deformando as suas cabeças em pregas em panquecas de lagarto preto, cada outra mulher de cabelos piramidais e juventudes em pernas de pata de aranha rodeavam a verdadeira mulher caída da Lua e - Liberace deu a volta tirando a chave que tinha em volta do pescoço. Olhou para o palhaço e apontou com o dedo à sua cara num gesto violento, Tu. E nesse momento todos os que olhavam para eles desataram em prantos, Miguelti não conseguia perceber se - o mastim saía num salto detrás de um véu e o palhaço ajoelhava-se num círculo de penas e cabedal negro e cabeleira; a mulher atirou a cabeça para trás em catarse; o palhaço de ferrugem beijou-lhe o pé nú e nesse momento a Lua dissolveu-se; o palhaço de ferrugem voltou a ser o palhaço de ferrugem; no meio da gruta da Mina Liberace, a olhar desnorteado caído no chão, com o seu roupão de peles cor-de-rosa e corpo barrigudo e nú, o pénis escondido entre as pernas gordas, parecia triste. O cão foi o primeiro a falar: O que... O que c*****o aconteceu aqui? Virando-se para trás em notória agitação repetindo para si mesmo abanando o focinho foda-se foda-se foda-se.
MIGUELTI:
O MÁGICO:
O DIRECTOR DESTITUÍDO:
Bom, estavam todos sem palavras.
MIGUELTI: Palhaço... o que é que acabou de acontecer?
Foi ainda assim o cão que falou primeiro no início do seu discurso "Eu achei que estivemos presos num" mas ao que o palhaço falou por cima dele, sereno Acabámos de passar em forma de ilusão usando a Mina e a sua propensão para a distorção da realidade o Liberace, usado como sistema de defesa e este como sentinela, e lacaio, do hipopótamo cor-de-rosa. Miguelti olhou para ele, num ensaio de abrir a boca na essência do sentido as palavras que o palhaço tinha acabado de dizer, e os seus olhos continuaram para a figura de Liberace cambaleante, de lado, no chão. Titubeava.
Miguelti ia a dizer uma coisa, mas o cão assomou entre eles visivelmente muito nervoso, e perguntava com a cauda a abanar bastante "Como é que isto é possível? O que é que acabou de acontecer?" enquanto Liberace olhava agora na direcção do grupo com os caracóis louros a cairem-lhe pela cabeça rosa à frente da cara chorosa, de dor?, olhando para eles em forma de súplica. Miguelti começava a sentir-se gradualmente com mais medo, assimilando o que tinha acabado de lhe acontecer.
O nariz ligeiramente russo do mágico foi o primeiro a sentir o cheiro característico (Ao longe. Oh, tão ao longe) das esfinges. Narda. Salva. Uma lança dourada emergiu da escuridão, rompendo-a como uma membrana, e passaram três esfinges, uma grande e dourada com a lança a ser na verdade a extremidade de um dedo da mão hiperdesenvolvido, e outras duas em tons azuis e focinhos de leão, perante eles, altas e imperscrutáveis -
- Não não por favor não - Liberace aninhava-se contra o chão rastejando de forma a nele conseguir o melhor possível esconder a cara. Não foram complacentes. A esfinge dourada olhou para Miguelti e perguntou-lhe: - Acabou aqui de acontecer o que penso que aconteceu
?, - Temo bem que sim, disse Miguelti.
- Sim. - Corroborou o palhaço de ferrugem.
O olhar da esfinge dourada desvaneceu-se no castanho dos seus olhos enquanto olhava desgostosa para o seu ombro, afastando a face de Liberace, e as duas esfinges leoninas avançaram e prenderam-no com as patas, pregando-o ao chão, e agora Liberace berrava no meio de uma Mina como uma criança esperneando como podia, descoordenamente. O seu roupão começava já a rasgar-se e atornar-se imundo em tons de castanho e cinzento molhado.
- Não quero ver mais isto - disse Miguelti - Vamos embora.
- Vamos. - concordou o director da trupe de circo destituído das suas funções.
O corredor - único - da Mina que se abria além do sítio por onde tinham chegado, livre agora de camuflado por almofadas e corpos e serviços de metal, sofás e garrafas inteiras ou partidas, o fim e o sentimento de esperança pertos de novo. Miguelti ainda ouviu a esfinge dourada proferir, embora com a voz já desvanecendo-se (e a sua imagem já invisível, uma vez que iam já bastante avançados na caminhada, tropeçando nos silêncios ainda incrédulos uns dos outros)
- Vais pagar pelos teus crimes
Mas Miguelti não quis pensar qual seria o tipo de castigo ou sequer se o conseguiria compreender a Liberace. As esfinges e o seu prisioneiro ficaram para trás
As horas seguintes passaram depressa ao ritmo da indiferença perante as paredes frias da labiríntica Mina. A verdade é que, foram todos outras pessoas por momentos. O cão de todos parecia o mais nervoso, falava pouco, ía mais à frente ou atrás de todos, focinho em ângulo curvo em direcção ao chão. O palhaço de ferrugem, ainda com o seu mau humor, era agora visto com um pouco mais de respeito. Do grupo as histórias que se sucederam até à sala do ídolo dourado foram a das paredes porosas que quando Miguelti lhes sentiu na mão e perguntou em voz alta para que serviriam ecos de uma mulher a cantar ressoaram dela em ritmos sincopados e - percebeu um pouco depois com todo o grupo a escutar se a parede seria feminina ou estaria uma voz presa dentro da parede, ou uma pessoa - ritmados; era o mesmo grupo de cinco ecos repetidos artificialmente, e o grupo ignorou-os. A Mina ficou mais quente também, à medida que se aproximavam do seu núcleo. Passaram por uma sala bastante fria com um líquido opaco e dormente no centro de uma depressão escavada na rocha em forma de piscina, desfazendo-se em fumo, com uma porta de madeira do outro lado, em que o mágico sugeriu poder ser azoto líquido, mas ao que o palhaço de ferrugem respondeu
- Não, isso era uma estupidez.
E atravessaram a sala pelas bordas da piscina e abriram a porta de madeira e continuaram pelos corredores da Mina, com Miguelti ainda como improvável líder.
A tavessia continuava. Por um lago de água vermelha numa gruta alta e inofensiva, com um barco preso a um cais de madeira cinzenta e propensa a transformar-se em pó com a pressão certa. Entraram no barco e o director mais o palhaço remaram em direcção ao fim da gruta e foi aqui que uma discussão nasceu entre o cão e o palhaço de ferrugem sobre coisa nenhuma, mas foi claro a Miguelti que foi o palhaço que ganhou com os seus argumentos em discussão tendo o cão ficado de trombas. Eles têm sempre este problema um com o outro, disse o mágico descontraidamente a Miguelti com o cão a apontar o focinho à cara do mágico e os olhos a arderem de raiva. O cão acha que é fixe, achas que és fixe não é, mas infelizmente já para Miguelti Não é suficientemente O que é que tu tens a ver com isso hã hã interrompeu o cão. Por mim podes ser mais fixe do que eu, disse o palhaço. Mas esse é o problema, não é?, disse o cão. Eu nunca te pedi nada, muito obrigado, e
- Estamos a chegar - disse o director
Verdade. Todos viram que a outra margem, desta vez sem um pontão para os receber, parado, construído por que mãos. - Acham que é seguro irmos para o outro lado?, era o cão que falava agora.
- Ha. Estamos agora a ter medo?, de prosseguir, agora quando não podemos voltar para trás?
- Não quero saber! Vou sair e pintar um quadro!, Vou
- Ainda antes de chegarmos ao outro lado...? - interrompeu Migeulti
- Fazer coisas importantes, e, não, quando sair da Mina, - haaa...
O céu estava a tremeluzir outra vez: as estalactites aborrecidas irregulares em espigões húmidos e os tectos em abóboda polidos davam lugares a imagens de nuvens a oscilar violentamente em cores, padrões de vento e o próprio céu afirmava o seu carácter mudando com certezas de ameça.
- Ha. - Disse o mágico.
As águas calmas do lago subterrâneo começaram a aguitar-se tanto que o barco dava grandes saltos e rodopiava na sua trajectória. Miguelti via o cão tão assustado quanto mesmerizado a olhar para esse céu falso irradiando luz, luz e claridade, e procurou também agarrar-se às bordas do barco com as duas mãos,
- Meu, calma! - gritava o palhaço completamente assustado para ninguém em particular.
Os olhos de várias coisas queriam olhá-los através desse céu, parecia a Miguelti. "isto é suposto acontecer, o céu" - o barco abanava nas águas mais revoltas - " o qu" tentou perguntar, mas tipo, de repente, o barco despedaçou-se; os cinco atarreram do outro lado da gruta - deram voltas no ar, viram o céu e a luz e a Mina e as paredes de rochas num delírio breve, o mágico quase sorriu - e cairam com aparato, o cão de dorso directamente, e o palhaço
- Haaaar, foda-se! Parti a perna!
Partiu a perna. O resto do grupo estava um pouco desanimado - o director da trupe de circo destituído das suas funções tinham caído à agua,o cão ladrava e ralhava para o ar ou queixava-se de quem tinha tido a ideia (indirectamente, pois tinha medo de proferir o nome das esfinges e ser morto no instante seguinte, ou levado para algum confim desconhecido da Mina do qual nunca mais sairia), e toda a gente, no geral, estava irritada ou maldisposta. Andaram durante horas por corredores e galerias e algumas salas até (uma, que Miguelti achou particularmente intrigante, estava cheia de quadros de homens e mulheres de meia idade com chapéus roxos e expressões de luto); experimentaram a dada altura uma grande sensação de calor, a meio de uma ponte de pedra em arco entre uma grandre fissura; e após isso, estavam a flutuar ou a cair redondos no chão para flutuarem de novo, naquilo a que Miguelti considerou como uma anomalia na força gravitacional. E ninguém o contestou, uma vez que ninguém percebia nada de ciências, embora a perna partida do palhaço de ferrugem continuasse partida. Apoiava-se no ombro do mágico. Coxeava. Por vezes, tirava debaixo da axila o remo que usava como suporte.
- Eu sempre gostei imenso, imenso de matemática - disse o cão a meio da travessia, para Miguelti e quem ouvisse - e física mas infelizmente nunca fui muito bom a matemática, mas adorava-a; principalmente sabes, a parte da matemática mais abstracta, aquelas equações e aquelas coisas, quase que pareciam poemas científicos... Sempre achei que
- És um imbecil - disse o palhaço de ferrugem sem olhar para ele.
- Uoou, calma lá - o mágico.
- Ha sou um imbecil? Sou um imbecil... como? -O cão não obteve resposta do palhaço de ferrugem, e ainda tentou, de novo perguntar com a voz um pouco mais grossa "sou um imbecil como então, diz lá...!", mas foi ignorado; foi por esta altura que o extintor transmutador expulsou um bafo de espuma gasocarbónica e as luzes se apagaram na Mina durante coisa de 42 minutos, mas o grupo teve tempo para parar, comerem qualquer coisa sentados no chão e em cima de panos, e conversar e dormir enquanto falavam tendo ideias que teriam sonhado mas falavam todos uns com os outros, e sem nunca se terem deitado acordaram de novo, espreguiçaram-se com as luzes a regressarem, Também já não ia dormir mais de qualquer maneira, diziam todos - à vez - e, ligeiramente mais malignos, andaram de novo.
- Não estamos perdidos, pois não? - perguntou o director da trupe de circos destituído das suas funções a Miguelti, que julgava saber o caminho.
- Não, não estamos - respondeu-lhe Miguelti, julgando que esperavam que ele soubesse o caminho, e que admitir o contrário seria semear o pânico - está tudo bem
O cão tinha ficado para trás e ouviram-no a uivar a gritar de trás de uma rocha inócua, com o palhaço a pegar nele e a arrastá-lo pelo dorso e por uma pata.
- Era o meu primo, era o meu primo - gritava, de lágrimas nos olhos e focinho molhado em direcção a uma parede onde parecia - deixa-me é o meu primo, eu sei que era o meu primo
- Espera! - gritou o mágico - O que é aquilo?
- huh, hã? - disse o cão, e Miguelti e o palhaço não disse nada mas olhou em frente de forma muito séria. O corredor ia agora em direcção deles. Entraram numa nova gruta! Iluminada com tochas e candeias por todo o lado bem alta e uma estátuta com seis braços de mais de sete metros de altura com as faces de uma mulher ou eunuco. O cão mal teve tempo de sair dos braços do palhaço de ferrugem e parar o choro: a estátua começou a mover-se e brandindo cada um dos seis braços que seguravam espadas, rígida mas violentamente saiu do pedestal onde estava enquanto atrás dela um portão feito do mesmo metal dourado se fechava, com um estrondo, por onde tinham entrado - estavam encurralados frente a frente com uma estátua assassina gigante.
- Foda-se!
Alguém berrou de início mas depois todos começaram a gritar e a fugir do caminho da estátua que andava toscamente mas agitava e projectava os braços em todas as direcções, só Miguelti mudou de posição, flectindo as pernas, procurando algo na sacola
- Aaaai ajudem ajudem vamos todos morrer ai ai socorro
O mágico agarrou-o nos ombros enquanto o cão passava por debaixo das pernas da estátua a gritar que nem um doido; o director destituído das suas funções atirava o extintor transmutador para longe pelo medo súbito esbracejando, o palhaço rastejava no chão procurando afastar-se de uma estocada de uma espada mais larga que o seu peito. Iam todos morrer fechados na sala com uma estátua assassina.
- Vamos todos morrer numa sala com uma estátua assassina! - berrou o mágico aos ouvidos de Miguelti que continuava a fitar a estátua no mesmo sítio enquanto procurava ainda algo na bolsa. Vendo-o tão calmo face ao perigo, o mágico arriscou julgar ter tempo para perguntar - mas... o que é que estás a fazer, o que é isso?
O mágico referia-se à esfera opaca de cor leitosa que Miguelti tinha produzido da sacola.
- Isto? - Miguelti soltou-se, pôs a língua de fora, fechando um olho e mirando a estátua que esbracejava em gestos mecânicos em estocadas e arcos as espadas - isto é uma maçã branca.
E lançou a maçã branca mesmo em direcção à cabeça da estátua que rebentou por todos os lados numa nuvem branca e laranja de fogo caindo, com um fenomenal estrondo no chão, inanimada, deixando cair as espadas. Os membros da expedição tiraram alguns segundos para olharem para ele - e para perceberem que, de facto, as putas das espadas eram mesmo maiores que eles - antes delhe perguntarem
- Bom, vamos? - antecipou-se Miguelti - quero despachar isto de uma vez, e estou farto de apanhar contratempos destes à minha frente.
- Heh, disse o cão.
A Mina ficava mais escura, descia a pique, subia, as luzes desapareciam. Lagos. depois, a humidade fria e as contemplações do palhaço:
- Quando sair daqui "Vais sair daqui?" - perguntou o cão, mas o palhaço não lhe respondeu e mais ninguém o interrompeu. - Quando eu sair daqui vou voltar à minha vida normal. Vou afogar-me nas águas de um rio e lavar-me. Deixar de respirar debaixo de água. Perguntar-vos a todos porque é que ainda não estamos loucos. Porque é que deixámos de contar o tempo -
- Espera - cortou-o Miguelti. O palhaço não falou mais. - Eu estou aqui há menos - muito menos tempo que vocês. Mas aquilo - Miguelti apontava com o queixo para uma escuridão à frente que parecia desabar num poço aberto.
- É só mais um pedaço de desconhecido - disse o mágico.
- Hum, sim - concordou o director - ali deve ser o fim.
- O fim? - Perguntou Miguelti - como é que sabemos que é o fim da Mina?
- Tenho usado o extintor transmutador como uma bússola - disse o director - uma bússola especial.
- Aponta para onde? - perguntou o cão.
- Para a verdade.
- Huuuh. - o mágico não estava a usar propriamente o sarcasmo.
Miguelti olhou para a escuridão à sua frente. A Mina parecia ainda vasta. Mas também parecia já ter menos segredos. Ou menos a falta desses segredos. Suspirou.
- Bom, então e é em frente? O fim da Mina.
- Só temos de andar em frente até chegarmos ao fim, só mesmo em frente.
Caminharam então até deixarem de ver para a frente ou para trás, tudo incluído, e a Mina nada fez ou nada disse, ou eles não a sentiram de maneira nenhuma, se ela não está viva. Era só andar em frente. O extintor transmutador possuia uma reentrância que pôde ser usada como uma lanterna portátil, atrás da boca, e o director apontava-a para as paredes.
- Ainda falta muito? - perguntou Miguelti.
- Estamos quase.
Reflectindo, Miguelti pareceu chegar à seguinte questão, de repente, e se estas pessoas também não são bem reais, não reais como eu, a existirem fora destas paredes, lúcidas, quadrimensionais, verdadeiramente? E se forem só como as esfinges, ou como - será que são reais? Todo este grupo, um cão que fala, como os homens e as mulheres que desapareceram - ou nunca chegaram a existir, de facto - do reino fictício criado por Liberace, quem são eles? Quem são eles todos? Será que posso confiar neles? E se eles não são reais?
Os pensamentos e medos de Miguelti foram oportunamente interrompidos pelo director que sem dramas parou em frente à escuridão, com o extintor transmutador numa das mãos.
- Chegámos ao fim. É aqui.
Miguelti aproximou-se do Director, seguindo apenas a luz branca trémula que indicava a sua presença.
- É aqui o fim da Mina?
- É aqui.
A luz do extintor não apontava para a escuridão. Apontava para uma parede à frente deles. Tinham de facto chegado a um ponto onde não era possível avançar mais. No centro, do tamanho do tronco de Miguelti, um cubo de pedra salientava-se da parede com um botão azul redondo no meio.
- Estão todos aqui, atrás de mim? - perguntou com a voz a tremer.
- Sim.
- Sim.
- Sim.
- Acho que chegámos, é aqui. Acho que chegámos ao fim da Mina. Está aqui um botão.
- O que é?
- Toca-lhe.
- Sim, toca-lhe.
- Mas será que devo...? - Miguelti olhou para a cara do Director da trupe de circo destituído das suas funções, que olhou para ele sério e voltou a olhar para o botão.
- Eu tocava.
- Acha...?
Ao olhar para o botão
- Peço desculpa - olhou para trás para o seu grupo com um ar algo infeliz - mas isto não está certo. Não faz sentido.
O botão reluzia à luz da tocha que o mágico carregava.
- Não caminhámos o suficiente para chegar ao fim da Mina. Não... não nos aventurámos o suficiente.
- Não te parece correcto...?
- Não me parece certo - respondeu Miguelti ao Director destituído, que institivamente dera um passo atrás, afastando-se do botão na parede. Miguelti aproximou-se da parede. encostou o ouvido à pedra húmida e não ouviu nada do outro lado - Encontrámos um... e depois umas esfinges, uma estátua atravessámos um lago... eu caí do céu! Antes de chegar, e...
- A esfinge que morreu - respondeu o palhaço de ferrugem.
- Não está certo isto - murmurou - não pode estar certo,
- Não é o fim? - Perguntou o cão.
Miguelti pretendia apenas sentir a textura da bola azul no centro do cubo de pedra que ocupava uma única parede na gruta de uma enorme Mina. Um botão no fim de uma Mina, chegou a pensar enquanto procurava examiná-lo, que ridículo, mas mal lhe tocou accionou qualquer coisa. O cubo retraiu-se com um som de pedra a raspar em pedra e a terra começou a tremer.
- Oh, fo -
Rochas começaram a cair do tecto. No tecto e no chão, entre um barulho que rapidamente se tornou ensurdecedor, nasciam preocupantes fissuras. A Mina começava claramente a ir abaixo. O pressionar do botão azul tinha impulsionado a sua destruição.
- Se esperares mais algum tempo vamos conseguir encontrar o Tigre Azul - gritava-lhe o Director - O Tigre Azul está atrás desta parede!, tenho a certeza! - os seus berros perdiam-se já entre os estrondos de pedras e rochas a esmigalharem-se, chãos a abrirem-se, paredes a romperem-se. A Mina ia implodir - O extintor transmutador
- Não quero saber, vou-me embora daqui! - Miguelti começou a correr na direcção oposta em direcção à escuridão. Sentia pedras a esmagarem-se contra o chão junto a ele e fendas no próprio chão a abrirem-se. Ao pé de si conseguia ouvir os gritos dos seus companheiros desnorteados a tentarem fugir ou a serem apanhados pelas rochas do tecto que caía. Tinha chegado ao fim da Mina e tinha-a destruído, mas era certo agora que ia morrer soterrado.
Por favor deixa-me conseguir chegar à superfície, pensava. Só um caminho, só um atalho para conseguir chegar à superfície. Corria entre e pela escuridão de um sítio que não conhecia nem compreendia e o próprio chão começava a desaparecer em fendas, rumo a um abismo do qual nunca sairia. Fugia. Por favor deixa-me chegar à superfície, deixa-me só chegar à superfície
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